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    Boaventurasportingbet 123Sousa Santos

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    Viver entre ruinas: a condição humana abissal

    "A dominação moderna se baseia na linha abissal que separasportingbet 123forma radical os seres plenamente humanos dos sub-humanos", escreve Boaventura

    Destruiçãosportingbet 123Khan Younis, sulsportingbet 123Gaza (Foto: Hatem Khaled / Reuters)
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    No momentosportingbet 123que escrevo, Gaza é a metáfora trágica do tempo que vivemos. Vivemos entre ruínas. Há memória recentesportingbet 123casas,sportingbet 123escolas,sportingbet 123hospitais,sportingbet 123gente viva, mas só presenciamos escombros e morte. Há memória recentesportingbet 123princípios éticos esportingbet 123legalidade nacional e internacional, mas só observamos impunidade, indiferença, cumplicidade ou revolta impotente.

    Há memóriasportingbet 123ideias e projectossportingbet 123resistência contra a dominação moderna eurocêntrica (capitalista, colonialista e patriarcal), mas aparentemente foram derrotados pela oposição frontal que lhes foi movida pelas classes dominantes, sobretudo desde o início do século XIX, as burguesias nacionais e a burguesia global, sempre as mesmas e sempre diferentes.

    Foi esta a classe que sempre beneficiou do sistemasportingbet 123dominação e que hoje proclama com ruidoso triunfalismo que nunca permitirá ser desalojada dessa posição pacificamente.

    Uma das características fundamentais da dominação moderna é a linha abissal quesportingbet 123modo radical separa os seres considerados plenamente humanos dos seres considerados sub-humanos ou infra-humanos, e como tal tratados. Esta linha abissal está radicalmente ausente da consciência filosófica moderna. É essa ausência que legitima a persistência da linha abissal, tanto nas relações sociais, como no desempenho “normal” das instituições políticas, jurídicas e educativas.

    A tragédia do tempo presente é que, embora a dualidade humanidade/desumanidade seja mais necessária do que nunca à sobrevivência do sistema modernosportingbet 123dominação, há um mal-estar geral, uma malaise indefinida, decorrente do facto de, depoissportingbet 123séculossportingbet 123convivência entre seres considerados plenamente humanos e seres considerados sub-humanos, ser impossível não ver que os seres sub-humanos são pessoas como todas as outras. O mal-estar que isso causa representa o momentosportingbet 123que a linha abissal se faz presente na consciência colectiva. 

    Do outro lado da linha abissal teimamsportingbet 123afirmar asportingbet 123presença pessoas consideradas sub-humanas que têm tudo para poder dizer sim à vida, tal como os seres considerados plenamente humanos. Mas, assim sendo, o que lhes falta para serem tratados como seres plenamente humanos? A malaise contemporânea reside numa perplexidade não assumida que decorre da suspeitasportingbet 123que a resposta a essa pergunta seja intolerável para quem a faz.

    Há, pois, dois tipossportingbet 123perguntas: as perguntas que se fazem para conhecer a resposta e as perguntas que se fazem para evitar a resposta. As primeiras são motivadas pela curiosidade, as segundas, pelo pânico. A antecipação do pânico é tão paralisadora quanto o pânicosportingbet 123si mesmo.

    O caracter inquietante da pergunta — o que lhes falta? — residesportingbet 123que na era moderna eurocêntrica os seres considerados plenamente humanos só o são porque outros seres tão humanos quanto eles foram expropriados da capacidadesportingbet 123dizer sim à vida.

    Primeiro, a existência da linha abissal é uma constante da era moderna eurocêntrica. Contudo, a linha não é fixa e historicamente tem-se movido, quer no sentidosportingbet 123incluir mais população na plena humanidade, quer no sentido inverso.

    Segundo, é possível passar individualmentesportingbet 123um lado para o outro da linha abissal e aí permanecer com alguma estabilidade; o que não é possível é que o colectivo a que o indivíduo originalmente pertenceu passe colectivamente para o outro lado da linha. 

    Terceiro, nas condições prevalecentes, sobretudo no Norte global, é possível que indivíduos transitem diariamente da plena humanidade para a sub-humanidade, e vice-versa.

    Viver do ladosportingbet 123lá da linha abissal. 

    Só partilham duradouramente a amizade, a alegria e o sofrimento com os que estão do mesmo lado da linha abissal. Os considerados plenamente humanos aparecem e desaparecem segundo as suas conveniências.

    O máximo reconhecimento oficial que podem obter deve-se ao factosportingbet 123serem úteis ou, pelo menos,sportingbet 123não serem considerados perigosos.

    São muitas as opiniões sob asportingbet 123condição com imagens própriassportingbet 123quem observa uma paisagem num safari urbano para turistas ou analisa resíduossportingbet 123uma história infeliz que felizmente foi superada ou é melhor esquecer.

    Têm opiniões próprias, mas ninguém as temsportingbet 123conta no mundo oficial senão na medidasportingbet 123que forem consideradas perigosas ou apropriáveis.

    Quando se vêem ao espelho têm a sensaçãosportingbet 123que o espelho os vê, segundo as circunstâncias, ora com desconfiança, resignação, complacência, ora com orgulho e incontida revolta.

    Quando saemsportingbet 123casa (se a tiverem) entram num mundo hostil que, no máximo, os aceita condicionalmente e por razões pragmáticas que lhes são estranhas. Quando a repressão tem sedesportingbet 123sangue, a casa é tão perigosa quanto a rua.

    O seu trabalho, quando pago, é sempre sobredesvalorizado e precário. Quando lhes é dada autonomia, é sempre sem condições para serem autónomos. A autonomia é uma das mil formassportingbet 123autoescravização.

    Se viverem num país onde os escravos viveram no mesmo território que os seres considerados plenamente humanos, nunca deixarãosportingbet 123ser descendentesportingbet 123escravos, mesmo que sejam descendentessportingbet 123reis ousportingbet 123rainhas.

    Não podem planear asportingbet 123vida nem a dasportingbet 123família. A cada momento ocorrem emergências e riscos que põem tudo a perder, inclusivamente a própria vida. Por mais que eduquem os filhos, sabem que eles muito provavelmente nunca poderão fugir a essa contingência.

    São tratados ocasionalmente com benevolência pelos seres considerados plenamente humanos, mas sabem que nenhum deles gostariasportingbet 123ser como eles ousportingbet 123viver com eles.

    Têm marcadores corporais, ideológicos ou religiosos que os tornam suspeitos aos olhos dos seres considerados plenamente humanos até provasportingbet 123contrário, uma prova que nunca vale para o colectivo a que pertencem.

    São instigados a imitar o mundo dos seres considerados plenamente humanos, mas sob a condiçãosportingbet 123nunca lhe pertencer ousportingbet 123o usar para benefício próprio.

    São permanentemente vigiados e policiados. A convivênciasportingbet 123proximidade com os seres considerados plenamente humanos, aparentemente benévola e educativa, é muitas vezes a mais insidiosa.

    Vão à escola para desaprender tudo o que a família ou os antepassados lhes ensinaram e, sobretudo, para não conhecerem as verdadeiras razões dasportingbet 123condição sub-humana. O que aprendem ensina-os a viver imitando os considerados plenamente humanos, mas nunca os ensina a serem diferentes deles e iguais a eles. O máximo que a escola lhes pode ensinar é não desprezar ou odiar, apesarsportingbet 123serem desprezados e odiados.

    Têm momentossportingbet 123intensa alegria, mas isso é muito diferentesportingbet 123ser feliz.

    Sabem que ninguém controla o destino, mas que, no caso deles, alguém, que não eles, controla o seu destino.

    Alguém lhes disse que no passado havia uma classesportingbet 123gente que não tinha nada a perder senão as suas grilhetas. Perguntam-se: tudo o que têm pode ser considerado grilhetas?

    Quando recebem ajuda travam a garganta para não tersportingbet 123gritar: Maldita seja a ajuda por ser necessária!

    Estarem conscientes que foram expropriados e desarmados é a arma primordial para resistir.

    Viver do ladosportingbet 123cá da linha abissal

    Na sociedade moderna eurocêntrica (capitalista, colonialista e heteropatriarcal), viver do ladosportingbet 123cá da linha abissal é sinónimosportingbet 123ser considerado plenamente humano. Ser plenamente humano nas condições da modernidade ocidental é poder viver realisticamente uma existência com as características diametralmente opostas às que acabeisportingbet 123enumerar para caraterizar a sub-humanidade.

    Viver a plenitude humana como se fosse uma condição universal é a inocência existencial primordial da modernidade ocidental. Ao longosportingbet 123vários séculos foi-se construindo a imensa biblioteca da inocência ocidental, enumerando, analisando, detalhando, criticando, propondo incessantemente novas interpretações para todos os princípios, valores e ideais supostamente universais, constitutivos dessa inocência, e organizando toda a parafernália institucional político-jurídica, ideológica e educacional que oculte a fractura abissalsportingbet 123que assenta essa inocência.

    Foi assim que se controlou e legitimou a parcela da humanidade a que foi concedido o privilégiosportingbet 123representar a totalidade da humanidade titular dos princípios e valores universais. Foi um investimento ideológico e político imenso. O que estavasportingbet 123causa era a reprodução da linha abissal e a garantia dasportingbet 123invisibilidade para poder ser plenamente eficaz na reprodução do sistema moderno e eurocêntricosportingbet 123dominação.

    Se a biblioteca da inocência ocidental tiversportingbet 123ser definida por conceitos essenciais, dois parecem evidentes: o liberalismo e o esquecimento da história. O liberalismo consistiu na prerrogativasportingbet 123universalizar o que convinha à burguesia emergente esportingbet 123particularizar (e, portanto, descartar) tudo o que se lhe opunha. O esquecimento da história consistesportingbet 123concebê-la como passado e nunca como presente. Os EUA foram construídos à custa do extermínio dos índios, mas isso é passado ou filmessportingbet 123Hollywood e John Wayne. O bem-estar dos europeus foi construído tanto com o roubo dos recursos naturais dos povos colonizados, quanto com o roubo dos seus recursos humanos através da escravatura, mas isso terminou com o fim da escravatura e as independências das colónias.

    A vigência dos princípios e valores universais e as instituições que lhes foram dando corpo nunca impediram que houvesse exclusões sociais no interior do mundo dos seres considerados plenamente humanos. Mas tais exclusões foram controladas e minoradas pela vigência efectiva desses princípios e instituições: primado do direito, democracia, direitos humanos. Ou seja, direitos e garantias a serem accionados para eliminar ou minorar tais exclusões.

    A cegueira constitutiva do liberalismo foi não ver que do outro lado da linha abissal, no mundo das relações entre os seres considerados plenamente humanos e os seres considerados sub-humanos, tais princípios e instituições não vigoravam, precisamente porque, se funcionassem do mesmo modo, poriamsportingbet 123causa a fractura abissal que lhes dera vida. Por isso, as práticas sociais nunca puseramsportingbet 123causa a universalidade dos princípios que violavam.

    O preço que se paga por se ser considerado plenamente humano e protegido como tal nestas condições reside num risco existencial. O risco de,sportingbet 123algum momento, vir a ser-se confrontado com a ideiasportingbet 123que essa condiçãosportingbet 123plenitude, longesportingbet 123ser um direito natural e universal, é um cruel privilégio que, desde o século XVI, assenta na necessidade inelutávelsportingbet 123submeter populações inteiras à condiçãosportingbet 123sub-humanidade.

    A ideologia da vigência universal que sustenta o princípio do primado do direito ou o princípio dos direitos humanos é tão hegemónica que as populações consideradas sub-humanas não têm sequer outra alternativa para minorar o sofrimento injusto a que são sujeitas senão apelar para esses princípios, mesmo sabendo que eles só virão emsportingbet 123ajuda para aliviar marginal e transitoriamente asportingbet 123condição e para garantir asportingbet 123passividade ante o sistemasportingbet 123dominação.

    Ser plenamente humano nas condições da modernidade ocidental implica um grausportingbet 123desumanização. Implica tersportingbet 123viver com a ideiasportingbet 123que a plenitude humana,sportingbet 123que tanto se orgulham os modernos eurocêntricos, assenta nos escombros, nas ruínas, nas valas comuns da humanidadesportingbet 123tantos seres humanos ao longo da história moderna, e hoje mais que nunca. Arrisco-me a afirmar, pensandosportingbet 123Gaza, que esse grausportingbet 123desumanização é vivido hoje com mais intensidade do que nunca, mesmo que seja uma vivênciasportingbet 123passividade. É o resultadosportingbet 123processos sociais complexos e até contraditórios, tão contraditórios quanto as soluções que estão a ser dadas a essa vivência existencial.

    As sociedades contemporâneas estão dramaticamente divididas entre os grupos sociais que não querem lembrar a história e os grupos sociais que a não podem esquecer. Por isso, concluo este texto com a voz do grande poeta palestiniano, Mahamoud Darwish:

    A guerra vai acabar
    Os líderes apertarão as mãos
    A mulher idosa continuará à espera do seu filho martirizado
    A rapariga esperará pelo seu amado marido
    E as crianças esperarão pelo seu pai herói
    Não sei quem vendeu a nossa pátria
    Mas vi quem pagou o preço.

    * Este é um artigosportingbet 123opinião,sportingbet 123responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasilsportingbet 123.

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