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    Viver entre ruínas: a condição humana abissal

    "Gaza é a metáfora trágica do tempo que vivemos", diz Boaventuracupom promocional blaze apostasSousa Santos

    Palestinos observam os danos no localcupom promocional blaze apostasum ataque israelense a uma escola que abriga pessoas deslocadas, na cidadecupom promocional blaze apostasGaza, 10cupom promocional blaze apostasagostocupom promocional blaze apostas2024 (Foto: REUTERS/Mahmoud Issa)
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    Este texto não trata especificamente da brutal atrocidade do genocídiocupom promocional blaze apostasGaza. Mas é-lhe dedicado, e as razões tornar-se-ão evidentes. 

    No momentocupom promocional blaze apostasque escrevo, Gaza é a metáfora trágica do tempo que vivemos. Vivemos entre ruínas. Há memória recentecupom promocional blaze apostascasas,cupom promocional blaze apostasescolas,cupom promocional blaze apostashospitais,cupom promocional blaze apostasgente viva, mas só presenciamos escombros e morte. Há memória recentecupom promocional blaze apostasprincípios éticos ecupom promocional blaze apostaslegalidade nacional e internacional, mas só observamos impunidade, indiferença, cumplicidade ou revolta impotente. Há memóriacupom promocional blaze apostasideias e projectoscupom promocional blaze apostasresistência contra a dominação moderna eurocêntrica (capitalista, colonialista e patriarcal), mas aparentemente foram derrotados pela oposição frontal que lhes foi movida pelas classes dominantes, sobretudo desde o início do século XIX, as burguesias nacionais e a burguesia global, sempre as mesmas e sempre diferentes. Foi esta a classe que sempre beneficiou do sistemacupom promocional blaze apostasdominação e que hoje proclama com ruidoso triunfalismo que nunca permitirá ser desalojada dessa posição pacificamente. 

    Uma das características fundamentais da dominação moderna é a linha abissal quecupom promocional blaze apostasmodo radical separa os seres considerados plenamente humanos dos seres considerados sub-humanos ou infra-humanos, e como tal tratados. Esta linha abissal está radicalmente ausente da consciência filosófica moderna. É essa ausência que legitima a persistência da linha abissal, tanto nas relações sociais, como no desempenho “normal” das instituições políticas, jurídicas e educativas.

    A ideiacupom promocional blaze apostasque na era moderna eurocêntrica a humanidade não existe sem desumanidade é difícilcupom promocional blaze apostasaceitar ou mesmocupom promocional blaze apostasentender, dado o extraordinário sistemacupom promocional blaze apostasilusões ecupom promocional blaze apostasmeias verdades que, com o passar do tempo, se converteucupom promocional blaze apostasrealidade para os que beneficiam desse sistema e, muitas vezes, mesmo para os que são vítimas dele. Certamente o par humanidade/desumanidade sempre esteve presente ao longo da história, sendo indiferente saber se se tratacupom promocional blaze apostasum castigo divino,cupom promocional blaze apostasum imperativo religioso, bíblico ou corânico, ou simplesmentecupom promocional blaze apostasuma fatalidade humana. O que é específico da era moderna é a negaçãocupom promocional blaze apostasque tal dualidade existe. Nos seus termos, a humanidade é uma só e sem excepções; o que está fora da humanidade é, por definição, natureza não-humana, vida não-humana, por mais parecida que seja com a vida humana. É notável a persistência desta concepção. Os índios americanos eram seres inferiores e, como tal, extermináveis; os escravos africanos eram coisas transacionáveis; os palestinos são, aos olhos dos sionistascupom promocional blaze apostasIsrael, animais humanos; os imigrantes a caminho do Norte global são seres descartáveis, sempre que desnecessários para os interesses econômicos dos países onde tentam chegar. Parafraseando James Baldwin, quem não tem o direitocupom promocional blaze apostasdizer sim à vida, tal como o fazem os seres considerados plenamente humanos, é, por definição, sub-humano. Ou, como diria Frantz Fanon, habita a zona do não ser. A condição sub-humana é, assim, construída como natural e como tal ninguém é culpado dela, ninguém é responsável por ela. Eliminá-la é que seria anti-natural, uma violência contra a natureza das coisas. A tragédia do tempo presente é que, embora a dualidade humanidade/desumanidade seja mais necessária do que nunca à sobrevivência do sistema modernocupom promocional blaze apostasdominação, há um mal-estar geral, uma malaise indefinida, decorrente do fato de, depoiscupom promocional blaze apostasséculoscupom promocional blaze apostasconvivência entre seres considerados plenamente humanos e seres considerados sub-humanos, ser impossível não ver que os seres sub-humanos são pessoas como todas as outras. O mal-estar que isso causa representa o momentocupom promocional blaze apostasque a linha abissal se faz presente na consciência coletiva.Do outro lado da linha abissal teimamcupom promocional blaze apostasafirmar acupom promocional blaze apostaspresença pessoas consideradas sub-humanas que têm tudo para poder dizer sim à vida, tal como os seres considerados plenamente humanos. Mas, assim sendo, o que lhes falta para serem tratados como seres plenamente humanos? A malaise contemporânea reside numa perplexidade não assumida que decorre da suspeitacupom promocional blaze apostasque a resposta a essa pergunta seja intolerável para quem a faz. Há, pois, dois tiposcupom promocional blaze apostasperguntas: as perguntas que se fazem para conhecer a resposta e as perguntas que se fazem para evitar a resposta. As primeiras são motivadas pela curiosidade, as segundas, pelo pânico. A antecipação do pânico é tão paralisadora quanto o pânicocupom promocional blaze apostassi mesmo.

    Viver do ladocupom promocional blaze apostaslá da linha abissal

    A condição existencialcupom promocional blaze apostassub-humanidade consiste num conjunto imensocupom promocional blaze apostascaracterísticas. Não significa que todas estejam presentes, mas algumas delas estarão. Uso o plural masculino universal para designar indivíduos e coletividades sub-humanizadas.

    -Não pertencem ao mundo que oficialmente se reconhece como mundo, mas vivem nele. Tal como nem todos os que vivem na cidade pertencem à cidade.

    -Conhecem os princípios e os valores universais (liberdade, igualdade, fraternidade), mas sabem, por experiência, que eles não os protegem; no máximo, contribuem para promover acupom promocional blaze apostaspassividade.

    -Têm opiniões próprias, mas ninguém as temcupom promocional blaze apostasconta no mundo oficial senão na medidacupom promocional blaze apostasque forem consideradas perigosas ou apropriáveis.

    -Quando se vêem ao espelho têm a sensaçãocupom promocional blaze apostasque o espelho os vê, segundo as circunstâncias, ora com desconfiança, resignação, complacência, ora com orgulho e incontida revolta.

    -Quando saemcupom promocional blaze apostascasa (se a tiverem) entram num mundo hostil que, no máximo, os aceita condicionalmente e por razões pragmáticas que lhes são estranhas. Quando a repressão tem sedecupom promocional blaze apostassangue, a casa é tão perigosa quanto a rua.

    -O seu trabalho, quando pago, é sempre sobre-desvalorizado e precário. Quando lhes é dada autonomia, é sempre sem condições para serem autônomos. A autonomia é uma das mil formascupom promocional blaze apostasauto-escravização.

    -São instigados a imitar o mundo dos seres considerados plenamente humanos, mas sob a condiçãocupom promocional blaze apostasnunca lhe pertencer oucupom promocional blaze apostaso usar para benefício próprio.

    -São permanentemente vigiados e policiados. A convivênciacupom promocional blaze apostasproximidade com os seres considerados plenamente humanos, aparentemente benévola e educativa, é muitas vezes a mais insidiosa.

    -Vão à escola para desaprender tudo o que a família ou os antepassados lhes ensinaram e, sobretudo, para não conhecerem as verdadeiras razões dacupom promocional blaze apostascondição sub-humana. O que aprendem ensina-os a viver imitando os considerados plenamente humanos, mas nunca os ensina a serem diferentes deles e iguais a eles. O máximo que a escola lhes pode ensinar é não desprezar ou odiar, apesarcupom promocional blaze apostasserem desprezados e odiados.

    -Têm momentoscupom promocional blaze apostasintensa alegria, mas isso é muito diferentecupom promocional blaze apostasser feliz.

    -Sabem que ninguém controla o destino, mas que, no caso deles, alguém, que não eles, controla o seu destino.

    -Alguém lhes disse que no passado havia uma classecupom promocional blaze apostasgente que não tinha nada a perder senão as suas grilhetas. Perguntam-se: tudo o que têm pode ser considerado grilhetas?

    - Quando recebem ajuda travam a garganta para não tercupom promocional blaze apostasgritar: Maldita seja a ajuda por ser necessária!

    -Estarem conscientes que foram expropriados e desarmados é a arma primordial para resistir.

    Viver do ladocupom promocional blaze apostascá da linha abissal

    Na sociedade moderna eurocêntrica (capitalista, colonialista e heteropatriarcal), viver do ladocupom promocional blaze apostascá da linha abissal é sinônimocupom promocional blaze apostasser considerado plenamente humano. Ser plenamente humano nas condições da modernidade ocidental é poder viver realisticamente uma existência com as características diametralmente opostas às que acabeicupom promocional blaze apostasenumerar para caracterizar a sub-humanidade. Viver a plenitude humana como se fosse uma condição universal é a inocência existencial primordial da modernidade ocidental. Ao longocupom promocional blaze apostasvários séculos foi-se construindo a imensa biblioteca da inocência ocidental, enumerando, analisando, detalhando, criticando, propondo incessantemente novas interpretações para todos os princípios, valores e ideais supostamente universais, constitutivos dessa inocência, e organizando toda a parafernália institucional político-jurídica, ideológica e educacional que oculte a fratura abissalcupom promocional blaze apostasque assenta essa inocência. 

    Foi assim que se controlou e legitimou a parcela da humanidade a que foi concedido o privilégiocupom promocional blaze apostasrepresentar a totalidade da humanidade titular dos princípios e valores universais. Foi um investimento ideológico e político imenso. O que estavacupom promocional blaze apostascausa era a reprodução da linha abissal e a garantia dacupom promocional blaze apostasinvisibilidade para poder ser plenamente eficaz na reprodução do sistema moderno e eurocêntricocupom promocional blaze apostasdominação. Se a biblioteca da inocência ocidental tivercupom promocional blaze apostasser definida por conceitos essenciais, dois parecem evidentes: o liberalismo e o esquecimento da história. O liberalismo consistiu na prerrogativacupom promocional blaze apostasuniversalizar o que convinha à burguesia emergente ecupom promocional blaze apostasparticularizar (e, portanto, descartar) tudo o que se lhe opunha. O esquecimento da história consistecupom promocional blaze apostasconcebê-la como passado e nunca como presente. Os EUA foram construídos à custa do extermínio dos índios, mas isso é passado ou filmescupom promocional blaze apostasHollywood e John Wayne. O bem-estar dos europeus foi construído tanto com o roubo dos recursos naturais dos povos colonizados, quanto com o roubo dos seus recursos humanos através da escravatura, mas isso terminou com o fim da escravatura e as independências das colônias. 

    A vigência dos princípios e valores universais e as instituições que lhes foram dando corpo nunca impediram que houvesse exclusões sociais no interior do mundo dos seres considerados plenamente humanos. Mas tais exclusões foram controladas e minoradas pela vigência efetiva desses princípios e instituições: primado do direito, democracia, direitos humanos. Ou seja, direitos e garantias a serem acionados para eliminar ou minorar tais exclusões. A cegueira constitutiva do liberalismo foi não ver que do outro lado da linha abissal, no mundo das relações entre os seres considerados plenamente humanos e os seres considerados sub-humanos, tais princípios e instituições não vigoravam, precisamente porque, se funcionassem do mesmo modo, poriamcupom promocional blaze apostascausa a fratura abissal que lhes dera vida. Por isso, as práticas sociais nunca puseramcupom promocional blaze apostascausa a universalidade dos princípios que violavam. 

     O preço que se paga por se ser considerado plenamente humano e protegido como tal nestas condições reside num risco existencial. O risco de,cupom promocional blaze apostasalgum momento, vir a ser-se confrontado com a ideiacupom promocional blaze apostasque essa condiçãocupom promocional blaze apostasplenitude, longecupom promocional blaze apostasser um direito natural e universal, é um cruel privilégio que, desde o século XVI, assenta na necessidade inelutávelcupom promocional blaze apostassubmeter populações inteiras à condiçãocupom promocional blaze apostassub-humanidade. A ideologia da vigência universal que sustenta o princípio do primado do direito ou o princípio dos direitos humanos é tão hegemônica que as populações consideradas sub-humanas não têm sequer outra alternativa para minorar o sofrimento injusto a que são sujeitas senão apelar para esses princípios, mesmo sabendo que eles só virão emcupom promocional blaze apostasajuda para aliviar marginal e transitoriamente acupom promocional blaze apostascondição e para garantir acupom promocional blaze apostaspassividade ante o sistemacupom promocional blaze apostasdominação.

    Ser plenamente humano nas condições da modernidade ocidental implica um graucupom promocional blaze apostasdesumanização. Implica tercupom promocional blaze apostasviver com a ideiacupom promocional blaze apostasque a plenitude humana,cupom promocional blaze apostasque tanto se orgulham os modernos eurocêntricos,  assenta nos escombros, nas ruínas, nas valas comuns da humanidadecupom promocional blaze apostastantos seres humanos ao longo da história moderna, e hoje mais que nunca. Arrisco-me a afirmar, pensandocupom promocional blaze apostasGaza, que esse graucupom promocional blaze apostasdesumanização é vivido hoje com mais intensidade do que nunca, mesmo que seja uma vivênciacupom promocional blaze apostaspassividade. É o resultadocupom promocional blaze apostasprocessos sociais complexos e até contraditórios, tão contraditórios quanto as soluções que estão a ser dadas a essa vivência existencial. 

    As sociedades contemporâneas estão dramaticamente divididas entre os grupos sociais que não querem lembrar a história e os grupos sociais que a não podem esquecer. Por isso, concluo este texto com a voz do grande poeta palestiniano, Mahamoud Darwish,

    “A guerra vai acabar
     Os líderes apertarão as mãos 
    A mulher idosa continuará à espera do seu filho martirizado
    A rapariga esperará pelo seu amado marido
    E as crianças esperarão pelo seu pai herói
    Não sei quem vendeu a nossa pátria
    Mas vi quem pagou o preço”.

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